2003/07/20

Conto - Traição Ardente




No adro da igreja juntavam-se velhos e novos, uns na conversa, outros na brincadeira.

O Carlos, mais conhecido por Moleiro, alcunha herdada do seu avô, apresentava-se no seu fato berrante de emigrante regressado à pátria. Ria-se alto e contava as alarvidades do costume.

-Lá, onde eu estava, a vida é que era boa! Comida, bebida, dinheiro, era tudo com fartura! Rica vidinha lá tinha... Tudo gente boa, amiga de dar.

-Mal empregue o que caía em tão ruim corpo... Sussurou o Chico Careca.

Só o Padre Baptista, com ar soturno e distraído, não comungava as risadas dos companheiros de conversa. Lembrava-se das palavras do moleiro na confissão

-Senhor Padre Baptista, perdoe-me porque pequei. Desejei uma mulher e cometi um pecado com ela.

-E quem é ela meu filho?

-A Ti Mariazinha, a mulher do Careca.

A resposta ácida do Chico Careca trouxe-lhe uma preocupação gelada, como o ar da serra que começava a soprar.

-Ó Carlos, tu falas muito mas vieste bater cá com os ossos. Falas muito mas pouco dizes.

-Foram as saudades. A saudade pode muito. Esta terra é bonita como o diabo. Dá-nos a volta ao miolo. Aqui fui nado e criado e é aqui que quero ser enterrado.

-Ai morres, morres seu animal. Com a minha mulher! Ora vá-se lá a ver! Não vais esperar muito pelo troco...Pensou o Chico Careca.

O ar carregado e frio convidava ao recolhimento caseiro. Um vento gelado, vindo das serras galegas, enregelava os paroquianos que se iam afastando, cada um na ânsia de chegar a casa e sentar-se ao calor de uma bela lareira.

-Até já!ouviu-se o Careca a despedir-se, num esgar cínico, do Moleiro.

O Moleiro ao chegar a casa deu por si a pensar na discussão passada.

-Olha aquele diabo do Careca, sempre bem-disposto, pronto a emborcar um copo ou dois na taverna do Ti Zé, esteve hoje carrancudo e provocador como nunca. Nem com um grão na asa o vi tão ruim. E o até já de despedida... Não tinha combinado nada para hoje. Será que ele... Não, é muito covarde!

O Careca entrou em casa seguido da mulher. Foi ao coberto buscar uma carqueja e uns paus para acender o lume. A mulher começou a tratar do almoço. Ele foi para o estábulo, a pretexto de alimentar o burro. Começou então a matutar, sentindo o veneno do ódio a percorrer-lhe as veias, queimando-o, dilacerando-lhe a natural pacatez da alma. E teve sede. Vontade de cobrir a vergonha com o álcool que tão felizes amnésias lhe proporcionava. Abandonando-se, foi para casa. Até ao fim da refeição, nem uma mosca se ouviu naquela casa. Comeram e beberam, ele mais bebeu do que comeu, e no fim, quando a Ti Mariazinha se ia levantar da mesa para buscar o copo de aguardente com que o Careca rematava sempre as refeições, levou tal bofetada que foi ao chão num instante. Quando ia começar a falar, o Careca, com os olhos injectados e flamejantes, deu-lhe tal paulada que a fez desmaiar.

Quando acordou estava no lagar amarrada ao ferro. Sentiu um cheiro estranho no ar que lhe fazia arder os olhos. A cabeça latejava de dor. De repente, ao perceber o que era o cheiro gritou. Não! Não podia ser. Ele não tinha coragem. E voltou a gritar. Gritou até ficar sem voz. Mas o lagar era fundo e numa adega escavada na rocha. Nada se ouvia lá fora.

Por fim abriu-se ao cimo da adega a porta. O Careca entrou por ela como um louco e com a garrafa de aguardente na mão. Os seus lábios tinham um esgar de ódio ébrio. Trazia uma vela. O medo apoderou-se, por fim, em pleno da Mariazinha. E tentou falar. Não conseguiu. Estava sem voz. Nunca tinha visto o seu Chico assim. Parecia o demónio.

-Então pensavas que me enganavas. Que eu era burro. Sim, corno e burro. Sempre foste muito estúpida. O emigrante deu-te a volta? Pois agora vais ver. A mim ninguém me engana e fica vivo para o contar. Maldita, vais morrer. Morrer queimada como uma bruxa que és, traidora.

O Careca deu então um passo, trôpego da aguardente, e tropeçou no depósito da gasolina, que imediatamente se começou a espalhar por toda a adega. Na queda, e na tentativa de se agarrar ao muro do lagar, tombou a vela. Num instante, a adega transformou-se num inferno de labaredas. A Mariazinha, num último momento de raiva, gritou:

-Maldito sejas, desgraçado que nos mataste...

Mas o Careca ria-se a bom rir, feliz por morrer com a honra de corno traído restaurada.